Durante essa última semana de julho, demos continuidade à nossa leitura coletiva de “A Arte de Amar”, de Erich Fromm, livro que foi uma das inspirações da era Love Yourself!
Durante as semanas anteriores, fizemos a leitura dos capítulos 1, 2 e 3 da obra. Você pode conferir uma resenha completa desses clicando aqui, aqui e aqui.
Nessa semana, finalmente, seguimos para a leitura do capítulo final e hoje, então, trazemos para você uma resenha com os principais tópicos e ideias dessa porção do livro. Vamos lá?
Depois de nos voltarmos à teoria do amor, agora nos vemos diante de algo ainda mais complexo: a prática do amor.
A discussão em torno da prática é mais complexa por dois motivos. Primeiro, a velha história de que “a teoria é uma coisa, a prática é outra”. Em segundo lugar e o mais problemático de todos é a forma como a maioria das pessoas espera uma receita para o amor, algo como “faça assim ou faço assado”, o que não deixa de ser também reflexo de um comportamento geral frente a vários aspectos da sociedade.
As pessoas querem ser ensinadas a amar como com um manual de instruções, porém o autor já nos avisa que aqueles que têm essa expectativa certamente ficarão decepcionados. Afinal de contas: "Amar é uma experiência pessoal que cada qual só pode ter por si e para si." (p. 66)
Por isso, precisamos, como o autor fortemente insinua, nos libertar da espera por prescrições. Se, porém, não podemos ter uma receita de como praticar a arte de amar, o que podemos fazer é discutir premissas da arte de amar.
Partindo da compreensão de que a prática de qualquer arte tem certos requisitos gerais, podemos tomar a mesma perspectiva em relação à arte de amar na sua prática. Assim, alguns requisitos que Fromm elenca são:
1) DISCIPLINA
"Nunca serei bom em coisa alguma, se não a fizer de modo disciplinado." (p. 81)
Amar por diversão ou apenas quando estiver disposto pode ser até agradável, mas nunca nos tornaremos mestres nessa arte dessa maneira. E, assim como para as demais artes, a disciplina não deve vir apenas em relação à arte em particular, mas em relação à toda a vida da pessoa.
Poderíamos imaginar que o homem moderno, pela forma como é disciplinado em ambientes como a escola ou o trabalho, teria facilidade em aprender a ter disciplina. Porém, "o homem moderno tem excessivamente pouca autodisciplina fora da esfera do trabalho" (p. 81) como "uma reação contra a rotinização da vida" que enfrentamos como parte da nossa estrutura social mercantil e capitalista, a qual foi discutida no último capítulo.
Assim, segundo Fromm, "o homem se rebela e sua rebelião toma a forma de uma auto complacência infantil" (p. 82), isto é, ou suportamos toda a disciplina em momentos de necessidade e sem outra opção ou não queremos disciplina alguma.
Contudo, sem a disciplina, a própria vida se torna muito mais caótica, pois esse requisito, diferentemente de como é geralmente pautado, se trata muito mais de equilíbrio do que de controle.
2) CONCENTRAÇÃO
É fato que a concentração é algo muito raro na nossa cultura. Se já era assim na época do autor em pleno século 20, quem dirá hoje nos tempos em que vivemos.
Vivemos, como Fromm pontua, em uma cultura que propõe uma forma de vida desconcentrada e difusa. Fazemos incontáveis coisas ao mesmo tempo – o que é real em muitos sentidos. Consequentemente, sentimos grande dificuldade em ficarmos apenas conosco mesmos, não em solidão, mas em solitude. Por isso, se sentar em silêncio e apenas contemplar é um grande desafio.
3) PACIÊNCIA
Algo de que, certamente, nenhum de nós tem dúvida é que quem busca resultados rápidos jamais aprende uma arte. Aprimoramento e aperfeiçoamento são aspectos que crescem exponencialmente, porém junto ao passar do tempo.
O problema é que todo o nosso sistema incentiva o oposto: a rapidez, a agilidade, a pressa. Esse ponto pode nos trazer à memória até mesmo a letra de “Paradise”, uma das músicas do BTS em Love Yourself: Tear: Pare de correr por nada, meu amigo. A vida não é uma corrida, mas sim uma maratona. E quanto antes tomarmos consciência dessa perspectiva, melhor conseguimos nos colocar diante da própria vida.
Mais uma vez, vemos os valores humanos colocados sob os valores econômicos. O ser humano acredita que perde algo muito precioso quando não faz as coisas rapidamente, ou seja, acredita que perde o tempo. Por outro lado, também não sabe o que fazer com o tempo que ganha.
4) PREOCUPAÇÃO PROFUNDA COM O DOMÍNIO DA ARTE
A preocupação como requisito no aprendizado de uma arte surge não no sentido negativo de uma ansiedade, por exemplo, mas no sentido de ter-se toda uma vida ou vários aspectos da nossa vida relacionados a essa arte, tomando os passos que forem necessários ao seu desenvolvimento. É verdadeiramente se importar com a arte da qual deseja se tornar mestre. Assim, como disse Fromm, "a própria pessoa se torna um instrumento para a prática da arte" (p. 83).
Diante da apresentação de cada um desses pontos, questiona-se: Como podemos praticá-los? Como posso desenvolver disciplina, concentração ou os demais? Bom, o autor analisa algumas possíveis respostas:
COMO PRATICAR A DISCIPLINA?
É fato que os nossos avós ou bisavós viveram sob uma forma de disciplina muito mais rígida e autoritária que nós, o que não era necessariamente saudável. Contudo, ter como resposta e reação uma tendência à desconfiança em relação a qualquer disciplina é igualmente problemático.
Qual é, portanto, o ponto fundamental aqui? "Que a disciplina não seja praticada como regra imposta do exterior e sim que seja a expressão da vontade própria de alguém." (p. 84)
O nosso conceito, sobretudo, ocidental de disciplina carrega a ideia de que tudo que a envolve deve ser doloroso. Contudo, o Oriente há muito mais tempo do que nós reconhece que a disciplina, por mais que nos leve a superar e lidar com algumas resistências, também deve ser agradável.
COMO PRATICAR A CONCENTRAÇÃO?
O passo mais importante no aprendizado da concentração, segundo o autor, é aprender a ficar só consigo mesmo. Essa é uma condição essencial para a arte de amar, pois se me conecto a outra pessoa ou a outras pessoas por não conseguir estar sozinho ou me sustentar sozinho, esse alguém se torna como um colete salva-vidas e essa relação pode ser o que for, porém não é amor.
É provável que, nessas experiências iniciais de tentativa de ficar apenas consigo, você se sinta nervoso, inquieto, ansioso e até mesmo pense que essa atitude é inútil. Por exemplo, por acaso você tem o costume ou já tentou desenvolver o hábito da meditação? É exatamente isso e, de fato, é muito difícil conseguir afastar todas essas sensações e pensamentos.
O autor nos concede, então, algumas dicas para essa prática, sobretudo a meditação: Se sente em uma posição repousada ou relaxada, feche os olhos, busque remover todos os pensamentos como se estivesse apagando um quadro e apenas acompanhe a sua própria respiração. Sentir a nossa respiração pode nos possibilitar um momento para, ao mesmo tempo, sentirmos a integralidade da nossa presença, do nosso eu.
Além disso, devemos aprender a desenvolver mais concentração em tudo o que fizermos, o que significa tomarmos a atividade do momento presente como a única coisa que importa, nos entregando totalmente a ela.
Fromm ainda pontua a importância de evitarmos conversação trivial, assim como evitarmos más companhias - compreendendo más companhias no sentido de pessoas que tenham a “alma morta”, cujos pensamentos nada mais são do que triviais e que vivem e emitem apenas opiniões estereotipadas em vez de refletirem acerca da vida.
Desse modo, o autor traz à tona o famoso “ouvir, mas não escutar”, o que acontece mais vezes do que possamos imaginar. Muitas pessoas ouvem e até mesmo aconselham sem realmente escutar às outras. Por isso, Fromm diz que "ficar concentrado em relação aos outros significa, antes de tudo, ser capaz de ouvir." (p. 85)
Por demandar tal nível da nossa atenção, a verdade é que qualquer coisa que façamos com maior concentração nos deixa mais despertos em vez de mais sonolentos ou preguiçosos. Não sei quanto a você, mas, para mim, isso faz muito sentido. No meu caso, quanto mais me desdobro em atividades diferentes em um período de tempo, mais cansada e desgastada me sinto.
No entanto, é essencial destacarmos que "ninguém pode aprender a concentrar-se sem tornar-se sensível a si mesmo." (p. 86) Assim como devemos ser sensíveis em perceber características e mudanças em máquinas ou em outras pessoas, devemos agir da mesma forma também em relação a nós mesmos. Para tal finalidade, como diz Fromm, precisamos: estar conscientes, não racionalizar imediatamente nossas sensações e sentimentos e, principalmente, estar abertos à nossa voz interior.
Assim, uma pessoa comum consegue ter a chamada sensibilidade corporal, o que é, de certa forma, fácil de se experimentar, pois temos uma noção geral do que é “se sentir bem”. Por exemplo, se sinto uma dor de cabeça, isso perturba a minha condição conhecida de “estar bem” e, desse modo, eu a percebo.
Contudo, desenvolver a mesma sensibilidade para com os nossos processos mentais é outra história. Para esse nível de sensibilidade pessoal, o autor afirma que é necessário possuir uma imagem - ou exemplo, poderíamos dizer - de funcionamento humano completo e saudável. O primeiro movimento lógico é que tentemos absorver essa imagem diretamente dos nossos pais ou grupos sociais em que convivemos desde cedo. Porém, o que devemos fazer se não encontramos ali essa figura exemplar?
Essa pergunta pode nos conduzir a um fator crítico dos nossos sistemas educacionais, por exemplo, tendo em vista que neles, usualmente, "enquanto ensinamos conhecimentos, estamos perdendo aquele ensinamento que é o mais importante para o desenvolvimento humano: o ensinamento que só pode ser dado pela simples presença de uma pessoa amadurecida e amorosa." (p. 87)
Para além disso, na nossa sociedade capitalista contemporânea, há um incentivo para que admiremos determinados tipos de pessoas, como aqueles que ficam a vista do público porque dão ao ser humano comum algum sentimento de satisfação - estrelas de cinema, estrelas da música, políticos, figuras importantes do mundo dos negócios, atletas, etc.
Fromm afirma, porém, que tais pessoas, em grande parte, não possuem quaisquer qualidades espirituais significativas, ou seja, qualidades que nos aprofundem na própria vida e em nós mesmos.
No entanto e felizmente, há exceções, especialmente ao olharmos para a arte. Nas artes de todas as épocas parece haver uma oportunidade de criarmos uma visão do bom funcionamento humano e, portanto, uma sensibilidade ao mau funcionamento.
É interessante pensarmos na maneira como o BTS, em toda a sua vastidão, representa exatamente isso. É esse caráter de significativa profundidade que difere o Bangtan de tantos outros atos que vemos atualmente. Como dizem, sobretudo na arte, sinceridade que gera sensibilidade.
Finalmente, Fromm nos coloca frente a frente com algumas premissas que são fundamentais especificamente à arte de amar. Como é apresentado por ele, a mais importante condição para a prática do amor é a superação do narcisismo.
"A orientação narcisista é aquela que só experimenta como real o que existe dentro da pessoa, ao passo que os fenômenos do mundo exterior não têm realidade em si mesmos, mas são experimentados somente do ponto de vista de serem úteis ou perigosos." (p. 88)
Desse modo, o oposto do narcisismo é o que o autor chama de “objetividade”, que é a capacidade de ver e perceber as coisas e as pessoas tais como elas são. A capacidade de separarmos a imagem objetiva e real de uma imagem que, por vezes, formamos dentro de nós baseada em desejos e temores que tenhamos.
Essa orientação narcisista de “enxergar o que quero”, como é analisada por Fromm, é perigosa e complexa, pois pode falsear a realidade para nós - em situações que vão desde relacionamentos em menor dimensão até a relação entre grandes nações, por exemplo.
Por outro lado, a atitude que reside por trás da fundamental objetividade é a humildade. Consequentemente, o amor e o aprendizado da arte de amar também requerem o desenvolvimento da humildade. Assim, por meio desses dois aspectos, podemos nos tornar capazes de dar um passo para trás antes de quaisquer preconceitos e podemos aprender a deixar de formular tantas suposições em relação às demais pessoas - não apenas em relação à nossa família ou amigos, mas a toda e qualquer pessoa.
Por essa razão, a capacidade de amar demanda um processo de despertar nas nossas relações com o mundo, com os outros e, sobretudo, conosco. Esse despertar, por sua vez, traz consigo mais um requisito essencial à prática de amar, que é a fé.
Fromm, porém, nos alerta aos diversos sentidos que se encontram nessa palavra e, portanto, o autor busca diferenciar dois tipos de fé: a racional e a irracional. Enquanto a fé irracional se trata de uma crença baseada em uma submissão a uma autoridade irracional e em uma aceitação de alguma coisa como verdade porque uma autoridade ou a maioria assim a afirma, a fé racional é uma profunda convicção independente e enraizada na própria experiência que se tem em pensamento ou sentimento.
Sob tal perspectiva, fé não é necessariamente a crença em algo, mas sim um traço de caráter que nos possibilita desenvolvermos certeza e firmeza nas nossas convicções - o que abrange toda a nossa personalidade em vez de nos lançarmos somente a uma crença específica e restrita.
Assim, nas relações humanas, a fé é indispensável para qualquer amizade ou amor, nas suas mais diversas formas. Ter fé em alguém significa ter certeza de que essa pessoa merece confiança. Soma-se a isso o fato de que devemos desenvolver fé em relação a nós mesmos. Dessa maneira, a culminação que encontramos é uma fé na própria humanidade. Por exemplo, se pensarmos no nosso país no contexto atual, certamente sentiremos tristeza, desespero, cansaço diante do que temos visto. Talvez, tenhamos até mesmo a sensação de que não há esperança ou volta. Nessas horas, porém, é importante nos voltarmos ao passado e trazermos à memória o que a humanidade já enfrentou e fez. Dessa forma, quiçá, podemos retomar um pouco da nossa fé na humanidade e seguir esperançando.
É por esse motivo que precisamos reconhecer que ter fé requer coragem, requer a capacidade de correr riscos e a disposição de aceitar até mesmo a dor e a decepção que, por vezes, nos assolam. Fromm afirma que "quem quer que insista na incolumidade e na segurança como condições primárias de vida não pode ter fé" (p. 93). Consequentemente, não consegue ter também coragem e, ainda pior, se vê diante de maior dificuldade tanto para amar como para ser amado.
Fromm nos fala ainda sobre a atividade e a produtividade na prática do amor, de modo que devemos estar em constante estado de preocupação por quem amamos, mas também com tudo quanto compõe a nossa vida. Afinal, não é possível ser produtivo no amor e não o ser no restante da vida ou vice-versa.
De modo semelhante, não pode haver uma “divisão de trabalho” no que se refere ao amor que praticamos em relação às pessoas próximas de nós e ao amor que praticamos em relação a estranhos. E, para que pudéssemos compreender melhor essa proposta, o autor diferencia dois princípios que existem na nossa estrutura social: a ideia do amor ao próximo e o princípio da probidade. O amor ao próximo é bastante difundido, porém o que se dá na prática geralmente é a probidade, a qual se configura como o famoso “faça aos outros o que você quer que façam a você” - frase e atitude que, na verdade, escondem um egoísmo “temperado” em forma de princípio que se diz ético.
Por isso, o grande problema que enfrentamos é o fato de que os princípios que alicerçam a sociedade capitalista e os que alicerçam o amor são absolutamente incompatíveis. Contudo, o capitalismo é uma estrutura complexa que ainda permite um certo grau de inconfirmidade e, então, temos que usufruir disso.
"Pessoas capazes de amar, sob o presente sistema, são necessariamente exceções. O amor é, por necessidade, um fenômeno marginal nos dias atuais da sociedade ocidental." (p. 97)
Dessa maneira, apenas aquelas pessoas que não se conformam pode se defender contra o espírito da sociedade capitalista. O ideal seria, é claro, que a sociedade fosse de tal forma organizada que a natureza social e amorosa do ser humano não se separasse da sua existência social. Por isso, qualquer sociedade que exclua relativamente o amor dá “um tiro no próprio pé”, por tomar uma atitude de contradição aos aspectos básicos da própria natureza humana.
Fromm conclui esse livro tão abrangente reiterando a ideia de que discutir o amor, como temos feito ao longo desse mês, não se trata de pregar um sermão, pois estamos falando daquela que é a última e real necessidade de todo ser humano. E, felizmente, a ocultação dessa necessidade não quer dizer que ela tenha deixado de existir.
Assim, se você caminhou até aqui conosco na leitura dessa obra durante esse Mês Love Yourself, nós gostaríamos de te parabenizar. A atitude e decisão que tomamos de nos propormos a analisar a natureza do amor e refletir sobre ele, além de buscar mudar as nossas práticas e criticar as condições sociais responsáveis pela ausência dele são passos fundamentais. É o que podemos fazer.
*As páginas que foram indicadas junto às citações se referem à numeração do livro como disponibilizamos gratuitamente no nosso site. Caso queira acessá-lo para encontrá-las, clique aqui.
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