Durante essa semana, demos continuidade à nossa leitura coletiva de “A Arte de Amar”, de Erich Fromm, livro que foi uma das inspirações da era Love Yourself!
Durante as primeiras duas semanas de julho, fizemos a leitura dos capítulos 1 e 2 da obra. Você pode conferir uma resenha completa desses clicando aqui e aqui.
Nessa semana, porém, seguimos para a leitura do 3º capítulo e hoje, então, trazemos para você uma resenha com os principais tópicos e ideias dessa porção do livro. Vamos lá?
Tendo em vista que o título desse capítulo é “O Amor e Sua Desintegração na Sociedade Ocidental Contemporânea”, o autor dá início a ele afirmando que “[...] a capacidade de amar, num indivíduo que viva em qualquer cultura dada, depende da influência dessa cultura sobre o caráter da pessoa comum.” (p. 65)
Em outras palavras, como o desenvolvimento do amor e a nossa compreensão acerca dele se relacionam à estrutura social da civilização ocidental em que nos inserimos e o espírito dessa civilização?
Nessa sociedade ocidental moderna, o amor perde o seu lugar para inúmeras formas de pseudo-amor - ou seja, de “falsos amores”, que são, na verdade, formas de desintegração do amor.
Desse modo, precisamos partir das raízes da própria civilização e, por isso, o autor debate minuciosamente as características e as condições do capitalismo, sendo ele a essência problemática dessa estrutura social.
Entre as suas características, temos como principais:
⚫️ O constante dilema do possuidor de capital (dinheiro) x o possuidor de trabalho (força de trabalho, mão de obra);
⚫️ O mercado como regulador de todas as relações econômicas e, consequentemente, também das sociais.
Diante disso, percebe-se que o capitalismo tem se sustentado por séculos, por eras diversas. Contudo, o capitalismo moderno passou por algumas modificações que desempenham uma forte influência sobre a estrutura do caráter do ser humano moderno.
Alguns exemplos de aspectos específicos do capitalismo moderno que podemos destacar são:
⚫️ A constante e crescente centralização e concentração de capital: Em outros termos, aquilo ou aquele que é grande se torna ainda maior e o pequeno, ainda menor. Como diria o hit dos anos 2000 no Brasil, “o de cima sobe e o de baixo desce”;
⚫️ A burocracia gerencial que surge tanto no trabalho como até mesmo no movimento trabalhista, sendo a burocracia aquilo que, de certa forma, une e move um coletivo, pois universaliza os indivíduos que a compõem;
⚫️ A organização do trabalho com uma divisão radical, de modo que o indivíduo perde a sua individualidade. É apenas uma parte em um todo e nem sequer sabe o que se dará no todo. Por acaso você já teve a oportunidade de assistir o filme “Tempos Modernos”, do Charles Chaplin? É um excelente retrato do que se expressa nessa característica.
Qual é, então, o tipo de ser humano moderno que esse capitalismo necessita para que siga se consolidando? A resposta são pessoas:
⚫️ Que cooperem;
⚫️ Que consumam cada vez mais;
⚫️ Que tenham gostos padronizados;
⚫️ Que sejam facilmente influenciáveis e previsíveis - leia-se que sejam facilmente manipuláveis;
⚫️ Que se sintam livres e independentes, porém que gostem de “ser mandados”, como o autor coloca.
E qual é o resultado dessa soma, de um capitalismo moderno e de um ser humano que se condiciona a ele? Fromm o resume em: “O homem moderno é alienado de si mesmo, de seus semelhantes e da natureza.” (p. 66)
Diante dessa conclusão, o autor descreve, então, o ser humano moderno através da palavra “autômato”. Porém, o que isso significa?
“Autômato” é uma máquina ou engenho composto de um mecanismo que lhe imprime determinados movimentos. Ou, melhor ainda, “autômato” é um aparelho com aparência humana, ou de outros seres animados, que reproduz os seus movimentos por meios mecânicos ou eletrônicos.
Assim, o ser humano torna-se alheio a si próprio e a tudo e todos que o cercam.
Agora, você se lembra do que discutimos nesse livro no seu primeiro capítulo a respeito da separação e da superação da separação do humano em relação à natureza?
Pois bem, o capitalismo moderno, nas suas características, nos oferece paliativos, ou seja, elementos que distraem e abrandam e que, consequentemente, ajudam as pessoas a se tornarem conscientemente inconscientes dessa solidão. É como dizer que alguns elementos do dito capitalismo moderno são como “pão e circo” que disfarçam, que mascaram a solidão inerente à existência humana. Alguns desses paliativos ressaltados por Fromm são:
⚫️ As rotinas de trabalho que nos prendem e consomem;
⚫️ A satisfação de constantemente comprar, trocar, consumir;
⚫️ E, ainda, o consumo passivo do que é oferecido por aquilo que o autor chama de “indústria do divertimento”.
Por isso, Fromm traz à nossa conversa o brilhante Aldous Huxley em algumas pinceladas das propostas do seu “Admirável Mundo Novo” - um livro também fantástico!
Existe uma ideia generalizada, como a que hoje vemos ser impulsionada em redes sociais ou outros espaços, de que todos são felizes. Erich Fromm afirma: “A felicidade do homem, hoje em dia, consiste em divertir-se. E divertir-se consiste na satisfação de consumir e ter [...]” (p. 67)
Assim, na lógica dessa estrutura civilizatória que estamos debatendo, tudo se volta ao consumo. Tudo e todos, ou melhor, o próprio mundo se transforma em um objeto de consumo e apetite.
Diante de todo esse contexto, o autor pesarosamente conclui que autômatos, como o ser humano moderno, não podem amar, não conseguem. São capazes apenas de trocar os seus fardos de personalidade e esperar um “bom negócio” - seguindo as mesmas condições de “mercado” que já analisamos nas semanas anteriores.
O melhor exemplo dessa incapacidade ao amor, segundo Fromm, é a ideia difundida que existe em relação ao casamento e que o pauta como uma equipe, de modo que o casamento feliz é aquele que, como uma equipe ideal, funciona “lubrificadamente” (o uso desse advérbio pelo autor foi uma sacada de mestre tendo como objetivo reiterar que se refere aos humanos como autômatos).
Por isso, os autômatos jamais conseguem chegar a uma “relação central”, como debatemos na última semana, mas apenas se tratam com bons modos e tentam fazer com que a outra pessoa se sinta bem. Portanto, o amor, inúmeras vezes, surge como uma oportunidade. Uma oportunidade de abrigo à solidão, que, na verdade, se transforma em um egoísmo a dois.
Contudo, é interessante pensarmos sobre como os mais diversos fatores se modificam com o passar do tempo e com as mudanças do espírito de uma época - inclusive o amor. É sob essa reflexão que Fromm nos leva por um detalhado, porém breve passeio por alguns exemplos de como o amor e o amar se modificaram em diferentes períodos. Para tal propósito, o autor nos apresentou - ou reapresentou - dois outros autores: Sigmund Freud e H. S. Sullivan.
Começando por Freud, o autor compreendia o amor basicamente como um fenômeno sexual. Sendo absolutamente influenciado pela experiência do macho patriarcal no capitalismo do século 19, Freud não diferenciou em momento algum o amor irracional e o amor como expressão de uma personalidade amadurecida. Além disso, a sua prerrogativa do amor como fenômeno sexual era extendida até mesmo à sua compreensão do amor fraterno - o amor entre quaisquer seres humanos.
Desse modo, Fromm nos introduziu como exemplo um período que foi influenciado por Freud e pela sua experiência no capitalismo do século 19: o pós Primeira Guerra Mundial, que teve fim em 1918. Relata-se que, após a Primeira Guerra, havia uma concepção generalizada de que a base de um relacionamento feliz era a satisfação sexual acima de todas as coisas. Por isso, tantos livros com instruções e conselhos a respeito do próprio sexo fizeram tanto sucesso na época. Ou seja, como o autor nos diz: “Adequava-se à ilusão geral da época imaginar que o uso das técnicas corretas é a solução não só dos problemas técnicos da produção industrial, como também de todos os problemas humanos.” (p. 68)
Contudo, diferentemente do que compreende esse posicionamento superficial, o amor não é, de modo algum, o resultado da satisfação sexual, mas a felicidade sexual é que é um dos resultados do amor.
Para que pudéssemos ter um ponto de comparação em relação a Freud, Fromm nos apresenta o psicanalista H. S. Sullivan.
Sullivan, que viveu até meados do século passado, foi fortemente influenciado pela experiência da personalidade alienada e mercantil já do século 20. Dessa forma, por exemplo, o autor compreendia a intimidade ou o próprio amor como um tipo de situação que envolve duas pessoas e que permite a validação de todos os componentes de valor pessoal em uma relação de colaboração, ou em outras palavras, uma relação de equipe - como o que debatemos aqui anteriormente.
Assim, tanto o amor como satisfação sexual como o amor como trabalho em equipe são duas formas de desintegração do amor na sociedade ocidental moderna, são duas formas do que Fromm chama de “patologia do amor”. Essa patologia do amor possui muitas formas individualizadas, que é o que o autor busca introduzir a nós por meio, novamente, de alguns exemplos:
⚫️ AMOR NEURÓTICO:
O amor neurótico se configura quando uma das pessoas envolvidas no “amor” ou ambas permanece intensamente ligada à figura de um dos seus pais - ou de ambos - e transfere os sentimentos, expectativas e temores que um dia experimentou em relação aos pais para a pessoa amada na vida adulta. Dessa forma, na verdade, as pessoas envolvidas nunca evoluíram de um padrão de relacionamento infantil e procuram esse mesmo padrão nas suas exigências afetivas da vida adulta.
⚫️ AMOR IDÓLATRA:
Fromm afirma que “se alguém não alcançou o nível em que tenha um sentido de identidade, [...] tende a idolizar - ou idolatrar - a pessoa amada.” (p. 75)
Torna-se alheio à abundância da sua própria existência, às suas próprias forças e projeta-as na pessoa “amada”, que é essencialmente adorada como portadora do amor.
Essa é, na verdade, uma forma de amor problemática que pode vir à tona até mesmo no que se refere a como nos relacionamos com artistas, pessoas que são como exemplos para nós, que admiramos e que têm grande papel na nossa vida. No nosso caso, tomemos para reflexão como exemplo o nosso relacionamento com o BTS enquanto ARMY, enquanto fãs. É claro que nós amamos cada um dos membros. Contudo, é fundamental que, nesse amor a eles, nós jamais esqueçamos ou joguemos de lado a abundância de quem nós somos.
Caso contrário, no contexto desse pseudo-amor, a pessoa se perde no “ser amado” ao invés de se encontrar.
⚫️ AMOR SENTIMENTAL:
O amor sentimental é caracterizado como um amor que só é experimentado na fantasia e não em relações concretas com outra(s) pessoa(s). O exemplo que o autor nos cede é o da substitutiva satisfação amorosa encontrada por alguém que consome filmes de romance, contos amorosos, canções de amor - no entanto, para por aqui.
Outro exemplo ainda mais contemporâneo que podemos trazer à memória se trata da tal cultura “shipper” que existe no nosso tempo - nos contextos em que “shipp” se refere não apenas a unir nomes de colegas e amigos de bandas, mas sobretudo pautar relacionamentos amorosos, deduzir seus pensamentos e construir narrativas que invadem a privacidade das pessoas em questão e as transformam em objetos.
Além desses exemplos de pseudo-amores, Fromm menciona ainda um outro erro frequente que não poderia ser deixado de fora desse debate: “A ilusão de que o amor significa necessariamente ausência do conflito.” (p. 77)
O motivo por trás dessa ideia precipitada, segundo o autor, é que os conflitos da maioria das pessoas efetivamente são apenas tentativas para evitar conflitos reais. Os conflitos reais, que são experimentados no nível profundo da realidade interior, não são destrutivos. Pelo contrário, levam a esclarecimentos que possibilitam que as duas pessoas envolvidas ganhem mais conhecimento e mais vigor, ou seja, alcancem mais amadurecimento.
Já caminhando ao fim do capítulo, Fromm salienta que, como os autômatos não conseguem amar uns aos outros, também não conseguem amar a Deus. Assim, a desintegração do amor de Deus - que debatemos na última semana - alcançou as mesmas proporções da desintegração do amor do homem, de modo que se apresenta na modernidade como uma regressão a um conceito idólatra de Deus sem a transformação da vida de acordo com os princípios de Deus.
Por fim, diante de tantas reflexões sobre formas enganosas de amor e atitudes que tomamos, por vezes, inconscientemente, finalizamos essa penúltima resenha com as palavras do autor que tratam o amor como a força motriz que é, como a atividade, a decisão e o desafio que é. Assim, Fromm diz a mim e a você que:
“O amor só é possível se duas pessoas se comunicam mutuamente a partir do centro de suas existências e, portanto, se cada uma se experimenta a partir do centro de sua própria existência. Só nesta experiência central existe a realidade humana, só aí há vivacidade, só aí está a base do amor. Assim, experimentado, o amor é um desafio constante; não é um lugar de repouso, mas é mover-se, crescer, trabalhar juntamente. Haja harmonia ou conflito, alegria ou tristeza, isso é secundário em relação ao fato fundamental de que duas pessoas se experimentam mutuamente a partir da essência de sua existência.” (p. 78)
*As páginas que foram indicadas junto às citações se referem à numeração do livro como disponibilizamos gratuitamente no nosso site. Caso queira acessá-lo para encontrá-las, clique aqui.
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