“Singularity”, faixa-solo do V do gênero musical neo-soul, escancarou primorosamente as portas de Love Yourself: Tear 轉, nos introduzindo a temas como identidade, solidão e autorreflexão.
Como já havíamos pontuado, Love Yourself: Tear gira em torno do ponto de conflito na narrativa e, consequentemente, no amor. Assim, “Singularity”, enquanto intro que se conecta perfeitamente também à faixa-título “Fake Love”, literalmente expressa o conflito, seja na sua letra ou MV. É isso que buscaremos apresentar e interpretar hoje para você, ARMY!
Que tal começarmos pela letra? Afinal de contas, ao compreendermos a mensagem da música, podemos conectá-la ao que assistimos no MV e os elementos ganham mais sentido.
Confira aqui, então, a nossa tradução completa para a letra de “Singularity”:
Antes de mergulharmos na letra dessa canção, precisamos falar sobre o seu título e o conceito que se esconde por trás dela.
Em 2018, após o lançamento de Love Yourself: Tear, RM fez a sua tradicional live no VLive nos apresentando alguns comentários sobre as faixas do álbum. A respeito de “Singularity”, o líder do grupo afirmou que, para além dos conceitos da própria era, a música havia sido inspirada também por “um livro chamado ‘A singularidade está próxima: Quando os humanos transcendem a biologia’, de Raymond Kurzweil e Ana Goldberger.”
Nesse livro, o autor principal, que é um conhecido inventor e futurista americano, discute o papel da inteligência artificial no futuro da humanidade, debatendo as maneiras pelas quais a inteligência artificial, a nanotecnologia e a robótica mudarão a humanidade a um ponto sem volta. Dessa forma, Kurzweil e Goldberger preveem um futuro no qual a inteligência das máquinas e a humanidade se fundirão como um próximo passo para a evolução da própria existência.
É um livro de aproximadamente 700 páginas e bastante complexo, mas a questão é: Como isso se relaciona às inspirações para “Singularity”?
Bom, precisamos antes dar um passo para trás e nos perguntarmos: O que é “singularity”, ou seja, “singularidade”?
Ao buscarmos essa palavra em um dicionário, e considerando os temas da música e os comentários do RM, duas definições em particular são válidas da nossa atenção:
1) A definição mais comum do dicionário, que nos indica que singularidade é “o estado de ser singular”, ou seja, de ser único, diferente, mas também, de certa forma, estranho (no sentido da estranheza à diferença, à excepção). Assim, ser uma pessoa singular é ser um indivíduo excepcional, mas também sozinho a medida em que reconhece a sua singularidade. Calma, daqui a pouco isso fará mais sentido!
2) Se levarmos em consideração o livro mencionado, a singularidade também pode significar “o momento hipotético em que a tecnologia se torna tão avançada que a humanidade passa por uma transformação drástica e irreversível”. Foco nas palavras finais!
Assim, se unirmos essas duas definições - a do dicionário e a do conceito dos autores do livro, podemos pensar em singularidade como “ser singular” + “mudanças drásticas e irreversíveis”.
Por isso, “Singularity”, como exploraremos a partir daqui, marca o momento em que alguém começa a tomar consciência de que é singular, tanto ao ser único como ao estar, consequentemente, sozinho. Essa percepção é um momento de transformação do qual não se pode voltar atrás. É uma mudança que tem como “gatilho” a autoconsciência e nos conduz diretamente à autorreflexão. Assim, no despertar dessa singularidade temos um ponto de virada na existência e no amor.
Ao olharmos as músicas e temas de Love Yourself: Her, a mudança expressa já nos títulos se faz nítida. Da vibe otimista e romântica de Her com “Serendipity” ou “DNA” nos movemos para um conceito mais intenso, pesado e introspectivo, que coloca em cheque os aspectos tóxicos e negativos do amor e o fim de um relacionamento, seja qual for.
“Singularity”, portanto, deve ser compreendida como uma ponte entre esses dois lados.
Agora sim, com esse pontapé inicial, podemos observar mais a fundo a letra da música, parte a parte:
V começa a cantar com a sua voz suave e aveludada e nos fala sobre um som de algo que se quebra e o acorda repentinamente. Você, provavelmente, já acordou alguma vez assustado, não é mesmo? Seja por um pesadelo ou um barulho externo que te chama de volta do seu sono. É, de fato, algo repentino! Por isso, perceba que, diferente de outras canções, “Singularity” não possui uma introdução instrumental. Ouvimos apenas um acorde grave e intenso, seguido pela voz do V que rapidamente preenche o ambiente sonoro.
Agora, pense bem: V canta que havia sido acordado do seu sono. Essas palavras são muito reveladoras, pois implicam que tudo quanto veio antes a esse despertar era um sonho, era parte do estar adormecido.
Esse despertar inesperado é causado pelo mesmo amor descrito em “Serendipity” ou “DNA”. Nelas, o amor era um sentimento positivo, predestinado pelo universo, real e que trazia vivacidade ao coração. No entanto, esse amor se tratava apenas de um sonho, uma ilusão. E essa ilusão que se revelou, na verdade, como um falso amor se torna uma realidade dolorosa que desencadeia essa repentina mudança de percepção, em primeiro lugar.
Por isso, V canta que tenta cobrir os seus ouvidos, como se tentasse ignorar essa nova percepção e voltar a dormir, voltar para o sonho ilusório daquele amor, mas já não é possível. Ele despertou e a realidade está o aguardando com força. Como dissemos antes, a percepção da singularidade que nos abre os olhos para muito mais é um momento de transformação do qual não se pode voltar atrás, não se pode voltar a dormir, por mais que se tente.
V volta a cantar sobre esse som de algo se quebrando - o que no MV se torna mais visual e mais fácil de compreendermos. Aqui, na letra, no entanto, o que está se quebrando são as ilusões do amor que não era verdadeiro e, sobretudo, os limites da sua própria identidade.
Ele afirma que sua garganta está doendo e que ele tenta envolvê-la com a sua voz, mas não consegue por não ter uma voz. Essa série de afirmações escancaram uma dificuldade de comunicação sincera, seja com outros ou consigo. Uma dificuldade em expressar as suas emoções e, principalmente, de expressar quem é.
Isso se dá porque, nesse amor do “sonho” em que ele se encontrava, era normal que a sua identidade fosse ocultada. Que uma máscara fosse usada. E que a sua voz, a verdadeira voz que se refere a expressar quem você é e o que pensa, fosse eliminada.
Agora, diante desse despertar perturbador, o eu lírico tenta usar a sua voz, mas já não consegue porque, nessa ilusão, ele a perdeu. Ele está tomando consciência da situação e das suas emoções, mas, no processo, ainda não sabe como expressá-las.
Impossível termos palavras mais claras na sua mensagem do que quando V canta: “Eu enterrei a minha voz por você”.
O eu lírico descreve, finalmente, em uma figura o que é que estava rachando e dando origem ao som que descreveu antes. Ele utiliza a metáfora de um lago congelado no qual ele teria se lançado e no qual uma grossa camada de gelo se formou. Vamos parar por um momento e pensar no uso dessa figura do “lago”.
Simbolicamente falando, a água pode nos remeter a aspectos como o nosso inconsciente bem como a emoções profundas. Já o lago, mais especificamente, levando em consideração a sua possibilidade de reflexo, simboliza a própria ideia de um espelho no qual a autocontemplação e autorreflexão são possíveis.
Assim, o que V canta nesse trecho é que, naquele amor ilusório, sem nem saber ao certo o que o amor significava, ele se lançou nesse “lago” de emoções profundas, se perdeu e afundou nele, de modo que não conseguia mais enxergar o seu próprio reflexo - a sua identidade. Consequentemente, uma camada espessa de “gelo”, um limite, se formou entre a profundidade desse “lago” e a “superfície” junto ao seu reflexo. E, agora, pela percepção da sua singularidade, esse limite está se partindo.
Nesses versos está a pergunta fundamental de toda a música e que desperta a percepção da singularidade nessa situação: Nesse sonho que eu pensava ser amor, eu perdi quem eu sou ou eu ganhei você?
O eu lírico, então, diz que com o som de que algo está se partindo e colidindo, ele “corre para o lago” e enxerga o seu rosto nele. Esse é o ponto de conflito máximo da letra, como um “cair em si” de que aquele amor falso estava se despedaçando, bem como os limites que a sua identidade tinha adquirido. Por outro lado e ao mesmo tempo, é claro que em primeira instância vem a falta e a saudade do que era o sonho, do que era estar mergulhado naquele amor, mesmo que fosse uma ilusão. Por isso, nos versos seguintes e no refrão que nos conduzem ao fim da música, podemos observar uma série de questionamentos que demonstram esse conflito que é essencialmente interno: Sei que é irreversível, que estou dando um basta nisso e esse despertar é necessário, porém o sonho era bom, a ilusão era confortável e o aparente amor parecia me fazer bem. Veja:
A primavera, como sempre, na figura das suas flores, representa a esperança que floresce. O “gelo” apenas começou a se quebrar e será um longo e complexo processo, porém, em algum momento e de alguma forma, a primavera chegará e todo o gelo terá sumido, revelando a superfície do lago e, consequentemente, o seu reflexo por completo.
É por isso que “Singularity” não se encerra em uma vibe mais animadora do que havia começado. Pelo contrário, se encerra tão intensa e abrupta quanto começou.
Uma razão para isso é que Love Yourself: Tear e sua exploração desses conceitos estava apenas começando e outra razão ainda mais importante é que a percepção da singularidade, a percepção de quem nós somos e de como isso, por vezes, estava perdido marca a MUDANÇA, mas não representa a SOLUÇÃO. A solução ainda estaria por vir no que discutiremos a partir de Love Yourself: Answer.
Assim, esse despertar da consciência, de fato, nos deixa sem chão, em conflito com o que somos, fazemos ou acreditamos. É exatamente nesses termos que V dá fim à letra de “Singularity”.
Ele questiona: Se, após essa experiência em que me perdi ou se, talvez, eu nunca tiver me encontrado, isso quer dizer que essa minha voz é falsa? Eu não deveria, então, ter me lançado naquele amor e naquele sentimento? Mas eu tive, de fato, alguma escolha? Se esse amor era falso, isso quer dizer que essa dor que é decorrente dele também é falsa? O que eu estou sentindo então? E o que devo fazer para lidar com isso?
É nesse complexo emaranhado de perguntas e conflitos internos que “Singularity” se prende. São questões, no entanto, fundamentais e que nos levam a uma reflexão impactante:
Quem é você? Você consegue olhar para o seu próprio reflexo e refletir sobre a sua existência e identidade? Ou a sua imagem, a sua essência se perdeu sob algum “gelo”? Se sim, o que construiu esse gelo entre você e a superfície? E mais importante ainda: o que pode te despertar e quebrá-lo?
Sim, a sensação ao mergulharmos nessa música é realmente de caos e angústia, e acreditamos que esse era o objetivo. Partindo dessa base toda que construímos pela letra, vamos dar uma olhada nesse MV que é belíssimo?
O trailer de comeback de “Singularity” é ao mesmo tempo simples e complexo, neutro e intensamente diverso, pois as suas peculiaridades e sentidos estão nos seus detalhes e na junção deles.
No MV, perceba que o mundo que envolve o V - ou seja, os cenários - são bastante minimalistas, com cores neutras e opostas uma à outra (preto e branco), o que retrata o sentimento desolador que se segue ao seu despertar, além da própria “retirada” das cores do sonho e do amor.
No entanto, por momentos no vídeo, algumas cores mais brilhantes surgem, o que expressa perfeitamente a metáfora do conflito e que, embora ele esteja despertando para a realidade, os “resíduos” do sonho e do amor ainda permanecem nele. Afinal de contas, é um processo.
Prova desse conflito são as cores principais que aparecem no MV para além dos tons neutros. Elas são: vermelho, azul e roxo.
Vermelho nos indica o amor, a paixão, o caos.
O azul simboliza elementos como a calma, mas também a tristeza e a própria solidão. Você percebe como são contrastantes?
A terceira cor, enfim, que surge é o roxo. Nós te perguntamos: Que cores devemos misturar para termos o roxo? Exato! Vermelho e azul. Ou seja, o roxo, em termos imagéticos, é a representação do próprio conflito, do próprio processo.
O conflito entre ainda se prender a pontos daquele amor ou querer seguir em frente no seu despertar é ainda expresso quando vemos V dançar com o casaco sobre o cabideiro já no início do vídeo.
Observe como ele tenta afastar a sua mão e o seu rosto, mas algo tenta o puxar de volta.
Tome um momento também para observar os dançarinos ao fundo nessas cenas. A cada movimento que parece indicar que V estaria se separando da figura desse alguém que representava o amor, os dançarinos parecem “reagir” a isso com o seu corpo. Desse modo, poderíamos pensar, por exemplo, que ali os dançarinos estavam representando as emoções e desejos confusos do eu lírico. Se erguem e se deitam abruptamente no chão, demonstrando a perturbação existente nesse conflito.
Eventualmente, V se solta daquele casaco. É como se estivéssemos assistindo o eu lírico aprendendo a aceitar e lidar com essa nova realidade, com a sua momentânea solidão e, consequentemente, com a sua singularidade.
Outro ponto ainda que revela metaforicamente o conflito na música é a própria coreografia em relação ao arranjo da música. “Singularity” não é uma música de ritmo acelerado, mas sim de notas suspensas e até intencionalmente atrasadas para criar a atmosfera desejada. Na outra mão, temos os movimentos da dança. V alterna entre movimentos rígidos, rápidos e quase espasmódicos e outros movimentos bem mais fluidos. Os movimentos rígidos podem nos lembrar alguém sendo puxado por cordas como uma marionete enquanto os movimentos fluidos ficam no limite entre alguém se libertando e perdendo o controle. Portanto, a própria coreografia está em conflito.
Seguindo pelos cenários e cenas do MV, vemos V junto a oito máscaras que aparecem no plano de fundo preto. Observe como as máscaras seguem os seus movimentos.
As máscaras simbolizam o “assumir um papel”, incorporar na sua fronte uma personalidade que não é, necessariamente, a sua. Além disso, são conhecidas por representarem a ocultação de emoções, das verdadeiras emoções.
Aqui, todas as máscaras fluem do próprio V e retornam para ele. Somando isso ao simbolismo desse objeto, podemos compreender essa cena como uma “dança” do eu lírico com as suas próprias emoções e, mais ainda, com as máscaras que ele considera em vestir em tentativas falhas de salvar ou manter viva a ilusão daquele amor.
No entanto, pelo “gelo” que está se quebrando, pelo seu despertar, ele parece estar também se fortalecendo e ganhando mais controle sobre elas. Novamente, é o conflito.
Mais a frente, quando as máscaras voltam a aparecer, V está segurando uma flor: sim, é o Smeraldo. Perceba como agora, na presença da flor, as máscaras parecem querer se afastar, saltam para os lados tentando evitá-la.
O Smeraldo, caso você não se lembre, tem como significado “a verdade que não foi dita”, ou seja, em grande medida ele representa a verdade. Assim, o Smeraldo aqui apenas reitera o despertar do eu lírico, o abrir os olhos para a “verdade” da situação e, dessa maneira, as máscaras, aquilo que oculta quem ele é tende a se afastar.
Podemos ver ainda no MV algumas cenas em que V parece tentar evitar a luz e outras em que parece mostrar até o seu rosto ou estender as mãos na direção dela. Isso pode ser interpretado, mais uma vez, como o conflito. Quero a luz - tomar consciência desse despertar e me afastar dessa ilusão que me conduz a máscaras, mas, até certo ponto, também quero fugir da luz - quero me manter na escuridão de um sentimento que me cega.
Continuando. Um dos próximos cenários que vemos no MV é esse sob luzes roxas e que é adornado com flores ao chão, jornais e uma TV antiga que cobrem as paredes e, mais a frente, o lago em processo de degelar no centro.
As flores nos remetem à primavera, ao futuro sobre o qual V canta também na letra. A esperança do dia em que todo o conflito e confusão cessarão.
Já os jornais e a TV antiga, metaforicamente, podem nos remeter ao passado, ou seja, ao “sonho” do qual ele está despertando.
Por isso, V ali se senta literalmente entre o passado e o futuro, em um presente que se expressa no seu rosto em dor, angústia e perda de direção.
Já o lago, que é figura central tanto na letra como no MV, aparece em duas formas pela nossa compreensão:
Uma representação do lago se dá nessa cena, um cenário bastante escuro e estranho que parece ter alguns fluidos por todo o ambiente. O que vemos aqui, na verdade, é o que há por baixo da superfície do “lago congelado”. São as profundidades do lago e, numa certa metáfora, as profundidades da nossa própria compreensão da identidade humana. Perceba como parece que V está dormindo, apoiado sobre as suas mãos.
A outra representação do lago é mais explícita e é a que vemos no cenário roxo com os jornais e flores. V se coloca diante do lago que está descongelando a sua superfície - o que vimos em vários momentos durante o MV por meio de cenas de gelo literalmente se partindo.
O fato de que V aparece tanto no topo quanto abaixo da superfície do lago, além de se conectar à letra da música e tudo o que analisamos aqui, também nos leva a pensar em duas referências: Narciso, da mitologia grega, e Ofélia, personagem de Shakespeare em “Hamlet”.
Primeiro, Ofélia. Em meio ao enredo da peça de “Hamlet”, a personagem sobe em um salgueiro pendendo sobre um riacho e um galho acaba se quebrando sob ela. Ela cai no riacho e, ao invés de se levantar, fica na água cantando canções, como se não soubesse do perigo. As suas roupas permitiram que ela permanecesse temporariamente à tona na água, mas, nas palavras de Shakespeare, “eventualmente, as roupas dela, pesadas com a água, puxaram a pobre coitada de seu melodioso 'deitar' para a morte enlameada".
O britânico John Everett Millais pintou uma representação dessa cena no fim do século 19. Veja que interessante:
Como Ofélia se relaciona a “Singularity”? O eu lírico da música também se lançou nesse lago, nesse sentimento, nesse amor e, mesmo sabendo que estava caindo em máscaras ou perdendo a capacidade de ver o seu reflexo, não se levantou. Apenas continuou afundando e, se continuar nesse caminho, poderia chegar a pontos irreversíveis no que diz respeito a perder a si próprio.
Agora, Narciso. Narciso é um personagem da mitologia que usualmente recebe mais conotações negativas do que positivas. No entanto, acreditamos que aqui o BTS tenha também invertido isso.
Caso você não conheça a história desse personagem, ela é simples: Narciso era um belo rapaz que todos os dias ia contemplar a sua beleza em um lago. Ele era tão fascinado por si mesmo que certo dia caiu dentro do lago e morreu afogado. No lugar onde caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.
Quando Narciso morreu, vieram as Oréiades - deusas do bosque - e viram o lago transformado de um lago de água doce num cântaro de lágrimas salgadas.
- Por que você chora? - perguntaram as Oréiades.
- Choro por Narciso - respondeu o lago.
- Ah, não nos espanta que você chore por Narciso - continuaram elas.
Afinal de contas, apesar de todas nós sempre corrermos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto a sua beleza.
- Mas Narciso era belo? - perguntou o lago.
- Quem mais do que você poderia saber disso? - responderam surpresas as Oréiades.
- Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias.
O lago ficou algum tempo quieto e por fim disse:
- Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era belo.
"Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas próprias margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida."
Para além dos bons alertas que esse mito pode nos apresentar, a parte da sua mensagem que mais parece se encaixar ao MV e ao conceito da música é a própria contemplação do reflexo. V ou eu lírico estariam tentando enxergar esse reflexo - ou a sua identidade - pela primeira vez em muito tempo ou pela primeira vez em definitivo.
Além disso, assim como o lago, através dos olhos de Narciso, conseguia enxergar a beleza singular da sua própria existência, o que precisamos aqui em “Singularity” é o mesmo: aquele eu lírico que se encontrava afundado sob as águas do sentimento ilusório, em “sono” e “sonho”, precisa desesperadamente olhar para si fora da água - sobre a superfície e para além do gelo que se construiu, precisa enxergar a sua singularidade.
Finalmente, chegamos à cena final do trailer de comeback de “Singularity”: V veste uma máscara com um lágrima e usa também um brinco com a palavra “LOVED”, que significa “AMADO”.
Observe que o brinco e a palavra estão muito mais em segundo plano do que a máscara. Essa imagem como um todo é uma sugestão de significados que nos dizem: O eu lírico é "amado" enquanto usa uma máscara, mas a que custo? Esse amor não é amor e essa máscara faz com que, de certo modo, ele sacrifique quem é.
O sacrifício é a ideia final que se aplica aqui. De nos sacrificarmos, nos privarmos, abandonarmos quando estamos apaixonados por algo ou alguém e acharmos que isso é amor. Não é.
Vestimos máscaras, nos perdemos e incorporamos características que parecem ser a única saída para que alguém sequer cogite nos amar. Passamos por isso tanto individualmente como coletivamente. Pense até mesmo em como o BTS passou por isso enquanto grupo, enquanto amadureciam e encontravam também a sua singularidade grupal.
A verdade é que o amor não pode te salvar, nem te tornar feliz, a não ser que você se ame primeiro. Descubra a sua singularidade.
Perfeito 👏💐
Eu tô sem chão! Isso é incrível, de todas as análises que já fizemos dessa música nenhuma foi tão profunda e tão desbravadora. Muito obrigada por dividir isso 🙏🏽