“Fake Love”, a faixa-título de Love Yourself: Tear, assim como a sua intro “Singularity”, nos conduz a temas como identidade e autorreflexão. Aqui, junto a elas, veremos a realidade do desenvolvimento e do despedaçar do que se acreditava que era o amor.
Para começarmos, confira aqui a nossa tradução completa da letra de “Fake Love”!
A partir daqui, podemos desconstruir a mensagem da música:
Os primeiros versos de “Fake Love”, de cara, já nos levam de volta aos temas de identidade e das máscaras, ou melhor, de mascararmos as nossas emoções ou características em virtude de algo que pensamos ser amor - com um importante destaque para o verbo “fingir”, que se repete.
Fica claro, assim, que o eu lírico, desde o início, já sabia que, por esse relacionamento, ele faria o que fosse necessário, inclusive se ocultar. É como dizer: Por você, eu colocaria uma máscara. Por você, eu me deixo em segundo plano. Como afirma o ditado popular, “já começou errado”.
Também nos parece bastante significativo que seja o V a cantar essa parte da letra, ao menos inicialmente, tendo em vista a conexão do seu personagem com o ambigrama das frases “Save Me”, ou seja, “Me Salve” e, ao mesmo tempo, “I’m Fine”, ou seja, “Estou Bem”.
“Desejando que o amor seja perfeito como ele próprio” é uma escolha de palavras muito interessante. É o famoso “a teoria é uma coisa, mas a prática é outra”, não é mesmo? O eu lírico soa ansioso para que aquele “amor” que está vivenciando na prática fosse igual ao que havia sido idealizado - como o sonho, o destino, a ilusão.
Assim, em uma tentativa desesperada de “unir as pontas” que fossem necessárias a esse relacionamento, o eu lírico buscaria mascarar, ocultar as suas fraquezas ou angústias, ou seja, aqueles aspectos que ele considera não desejáveis e que poderiam desestruturar ou fragilizar os pilares desse “amor”. Novamente, começou errado.
No entanto, ele começa a despertar ao fato de que isso não seria possível - o que fica expresso nesses dois últimos versos, quando o eu lírico toma consciência de que esse “sonho” do amor não vai se tornar realidade exatamente porque é um sonho, é uma idealização, não é a realidade.
Finalmente, “Eu cultivei uma flor que não podia florescer” é, sinceramente, um dos versos, senão o mais brilhante de toda a letra de “Fake Love”.
Antes de mais nada, ele nos traz à memória a lenda do Smeraldo, flor fictícia do BU que estava vindo à tona junto à era Love Yourself. Na lenda do Smeraldo, um homem de aparência grotesca e que vivia isolado em um castelo se apaixona por uma moça da vila que roubava flores do seu jardim para sobreviver com algumas vendas, mas ele acreditava que a mulher jamais seria capaz amá-lo ou aceitá-lo pela sua aparência. Assim, em uma ideia mirabolante, o homem decide criar uma flor jamais vista, literalmente do zero: o Smeraldo. Uma flor que seria tão bela e perfeita, a qual a moça poderia vender a altos preços e ter uma boa vida. Dessa forma, quem sabe, ele poderia se revelar a ela também. No entanto, antes que pudesse manifestar o seu amor por ela, depois que termina de cultivar a sua flor inédita, o homem vai até a vila e descobre que a mulher já havia falecido - ou seja, ele cultivou a flor, mas o objetivo dela, o amor, jamais foi atingido.
Pense bem: Qual é o grande propósito de uma flor? Florescer. Para que uma flor floresça, o que poderíamos dizer que é necessário? Água, luz solar, nutrientes, alguns cuidados básicos. Assim, em uma metáfora da flor para o próprio “amor”, sinta a frustração do eu lírico nessas palavras. É como se ele dissesse que tinha “investido” tudo o que podia, tudo de si no florescimento desse amor, no desenvolvimento desse amor que parecia ser a resposta do universo. Porém, mesmo assim, independentemente do cultivo, essa flor jamais poderia florescer porque ela não possui raízes. Essa flor é rasa, superficial. E, dessa forma, diante dessa compreensão, ele pode enfim nomear o que esse amor é de verdade:
O refrão de “Fake Love” é simples e curto, mas expressa tudo o que era necessário. Nomear o problema enfrentado: Um amor que se revelou como falso, como irreal. E, assim como vemos na Literatura em poemas e afins, a repetição de um termo ou palavra tem uma função muito importante: a ênfase.
Por isso, nessa mistura confusa de despertar, de perceber a tristeza, a dor e a quebra da ilusão, não há nada mais que o eu lírico possa gritar aos quatro ventos a não ser: Eu sinto muito, mas eu estou cansado e é hora de encararmos os fatos; isso é um falso amor.
Esses quatro versos do RM, acompanhado pelo Jung Kook, revelam muito sobre a natureza desse “amor”. Os primeiros três versos retratam ações em função do “amor” enquanto o último verso expressa a sua dura consequência.
Nas últimas duas semanas, em meio à nossa leitura coletiva de “A Arte de Amar”, de Erich Fromm, livro que inspirou a era Love Yourself, nos deparamos com o autor discutindo o caráter ativo do amor e da importância do “dar” dentro dele.
Contudo, Fromm nos alertou: “O equívoco mais vastamente espalhado é o que entende que dar é abandonar alguma coisa, ser privado de algo, sacrificar [...] de modo que dar é um empobrecimento”.
Portanto, para o autor, essa é uma concepção muito precipitada e que conduz muitas pessoas a decisões igualmente precipitadas. O “dar”, o “ceder” em favor do amor não significa sacrificar, nem perder, mas sim expressar a sua potência e vitalidade. Expressar abundantemente quem você é ao invés de vestir máscaras.
Diz Fromm: “Dar implica fazer da outra pessoa também um doador e ambos compartilham da alegria de haver trazido algo à vida. [...] o amor é uma força que produz amor."
Assim, fica claro para nós que o eu lírico em “Fake Love” tomou exatamente o caminho oposto. Ele entregou o mundo, mudou tudo apenas por esse “você”. Quer se tornar uma boa pessoa na medida do que uma boa pessoa pareça aos olhos desse “você”.
Infelizmente, porém, toda ação possui uma reação e todo fato tem uma consequência. A consequência para o eu lírico está expressa em: Agora eu não me conheço. Ele se desdobrou e se partiu em mil pedaços para ser a pessoa exata para esse amor. No fim das contas, no entanto, era apenas um falso amor e o que restou foram os seus pedaços, foi a sua identidade partida pelas máscaras que ele vestiu em favor desse relacionamento.
Os versos do j-hope trazem uma sequência perfeita para os do RM. A metáfora da floresta, para começo de conversa, foi uma escolha muito sábia. A floresta, simbolicamente, pode nos remeter ao desconhecido, um espaço que nos deixa um pouco apreensivos pelas suas possibilidades, mas também pode simbolizar um ambiente no qual a vida ganha força e prospera.
Assim como a flor que foi cultivada mas não floresceu, o eu lírico afirma que esse “amor” constituiu uma floresta para ambos, um espaço ou situação, de certa forma, desconhecido, porém repleto de possibilidades e que trazia vivacidade e cores à própria existência. Em resumo, a floresta representa o relacionamento entre eles.
No entanto, agora, caindo em si, ele percebe que, nessa “floresta” que deveria ser feita pelos dois e pertencer aos dois, apenas ele estava lá. Além disso, os caminhos e rotas que ele tomou para conseguir alcançar essa “floresta” foram sendo esquecidos ou borrados, ou seja, o eu lírico ainda não sabe como deixar a “floresta” e retornar. Ele literalmente se perdeu. E, ao se perder em virtude desse “amor”, ele acabou perdendo a si próprio.
Por fim, a escolha do verbo “balbuciar” aqui nos parece muito intencional. Por que não “falar”, “questionar” ou “dizer”? O eu lírico balbucia, como uma criança aprendendo as suas primeiras palavras. Assim, o uso de “balbuciar” apenas reitera o fato de que ele, com as suas máscaras, já não sabe quem é e, portanto, terá que reaprender a balbuciar, a falar, a questionar no que se refere à sua identidade.
Você se lembra do MAMA 2018 e da performance de “Fake Love” que o BTS apresentou naquela ocasião? Em um breakdance, os membros balançavam os seus corpos para lá e para cá, como marionetes. Aquele movimento teve origem nesses versos:
Novamente, temos aqui fatos que levam a consequências. Como uma bola de neve que se torna cada vez maior e mais perigosa. Jung Kook começa cantando sobre como o eu lírico construiu uma linda mentira - uma mentira que, por “amor”, oculta quem ele é. Porém, apenas se apagar, aos olhos dele, não seria suficiente.
Assim, além de se apagar, na loucura desse “amor”, ele diz que tenta se tornar a boneca desse alguém. Ou poderíamos dizer que tenta se tornar uma marionete. Tome alguns segundos para pensar na figura de uma boneca ou de uma marionete. Ela tem vida? Não. Ela tem controle sobre si? Não. É algo real ou artificial? Absolutamente artificial, construída.
Analogamente, o eu lírico, nesse falso amor, perdeu o controle de si, construiu uma imagem artificial e entregou, em vão, toda a sua vida em favor da vida de um outro alguém.
O grande problema é que, no fim das contas, esse outro alguém não estava interessado sequer em manusear os fios da marionete. Pelo contrário, estava prestes a cortá-los.
O corte aos fios da marionete vem à tona nessa série de versos. De tanto buscar se mascarar e se tornar essa pessoa ideal para esse “amor” e esse alguém, o eu lírico se tornou um completo estranho - estranho a ele mesmo, à pessoa amada e ao próprio sonho do amor.
Ele chegou a tal ponto que afirma “Sorria e diga que me ama” ou “Olhe para mim, a quem eu mesmo larguei”. Essas palavras deixam explícita a insegurança. Insegurança em si mesmo, de modo que o eu lírico precisa que a outra pessoa diga que o ama, precisa se agarrar algo, nem que isso signifique perseverar na mentira, na ilusão.
Nesse ser estranho que se torna, ele recebe agora uma negação da própria pessoa que acredita amar, o que se desencadeia nos versos quase como um diálogo. Tente imaginá-lo:
- Você se transformou em um total estranho para mim! Você não é mais a pessoa que eu conhecia, a pessoa por quem eu me apaixonei.
- O que você quer dizer com “não sou mais a pessoa que você conheceu”? Eu me transformei a partir dos seus moldes! Eu sou cego por você, eu faço tudo por você.
Diante desse caos, finalmente o eu lírico atinge a questão que tanto precisava: Como isso poderia ser amor? Isso não é amor, tudo isso que vivemos, desde o início, é um falso amor.
O eu lírico se vê, então, diante de uma nova situação completamente diferente: Ele não sabe quem é, perdeu quem ele acreditava que amava e por quem acreditava ser amado, o amor cujo ele tanto cultivou já não existe mais e não preciso do seu cultivo. Tudo veio ao chão. E agora?
É diante desse borrão de dúvidas, tristeza e perda de direção que ele se vê. E, por isso, os versos do Jimin capturam essa sensação de forma tão certeira. Mais uma vez, observe o uso da repetição para a função da ênfase, além da musicalidade: “Eu não sei, eu não sei, eu não sei” ou “Eu apenas sei, eu apenas sei, eu apenas sei”.
Após esse trecho cantado pelo Jimin, retornamos na música ao refrão, até chegarmos à parte final da canção. Perceba que “Fake Love” se encerra com a mesma estrofe com a qual teve início, que nos falava sobre o seu desejo de que o amor fosse perfeito e sobre a flor que jamais poderia florescer.
Novamente, do início ao fim, ele sabia que estava fadado a desmoronar. Antes, apenas na teoria e, agora, também na prática.
Dessa maneira, assim como ao discutirmos “Singularity”, “Fake Love” não se encerra em uma vibe mais animadora do que havia começado. Pelo contrário, se encerra tão intensa e pesada quanto começou.
O eu lírico fica apenas com duas certezas:
A certeza de que, nesse momento, ele não faz ideia de quem é ou do que fazer.
E a certeza de que o que viveu foi um falso amor, o que o levará de volta à estaca zero: O que é o amor? E por que esse estava fadado a não florescer?
Talvez a resposta esteja em: Porque começou em máscaras e, com o tempo, apenas as reafirmou. Como dissemos pela manhã sobre o teaser do MV de “Fake Love”, para amar a si e a outros e caminhar ao amadurecimento e soluções, é necessário primeiro se enfrentar.
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