AS CARTAS DO BTS apresenta:
Como no início dessa semana conversamos um pouco sobre as intros e os outros do BTS ao longo da sua discografia, hoje gostaríamos de apresentar a você uma análise breve, porém profunda de um dos outros mais marcantes do grupo até aqui e que merece alguns minutos da nossa atenção: “Outro: Her”, uma música da rap line que encerrou o primeiro álbum da era Love Yourself e, ao mesmo tempo, nos deu pistas de que viveríamos ainda uma longa jornada em reflexão sobre o amor junto ao BTS.
Em entrevista à Billboard após o lançamento do álbum Love Yourself: Her, RM disse sobre essa faixa:
“Eu acho que foi o trabalho mais rápido que fiz para este álbum. Eu escrevi a estrofe em 20 minutos. Simplesmente veio, muito sinceramente, do fundo do meu coração. Achei que era o outro certo para este álbum porque se trata realmente de uma gama de emoções. Estou dizendo que conheci essa pessoa que eu realmente amo, essa pessoa é o amor da minha vida agora, estou dizendo que eu estava confuso e estava procurando por amor e que esse mundo é complexo. [...] É isso que eu estou dizendo: Você é a minha dúvida, mas também as minhas respostas. Você é a minha ‘ela’, mas ainda é a ‘lágrima’. O gancho está dizendo que o amor não é apenas felicidade, não é apenas alegria, não é apenas prazer. Se você quer amar uma pessoa, deve saber que há lágrimas e pode até haver ódio. Acho que o amor realmente inclui tudo isso. Isso é o que eu estava tentando dizer. É complexo.”
É sobre essa complexidade do amor em todos os seus aspectos e do conflito que pode surgir entre questões como amor e identidade que gostaríamos de partir hoje. Sendo assim, confira aqui a nossa tradução completa da letra de “Outro: Her” e, em seguida, vamos a fundo nela, parte a parte!
No primeiro verso de “Outro: Her”, RM nos apresenta uma definição para o próprio mundo e entendê-la pode nos abrir as portas para a letra que seria construída. Quando usamos “complexo” como substantivo e não como adjetivo, essa palavra pode trazer o sentido de “um conjunto cujos componentes funcionam entre si por numerosas relações de interdependência ou de subordinação e se configuram como um todo”.
Assim, poderíamos ler esse verso trazendo em destaque a sociedade em si, nesse conjunto que é um todo sistêmico e funciona por infinitas relações entre pessoas-pessoas, pessoas-objetos, pessoas-mundo, objeto-mundo e assim por diante. Dessa forma, simplesmente ao dizer “O mundo é um complexo”, RM desperta o ouvinte à maneira como o mundo, por vezes, se vê reduzido aos limites desse complexo, dessa sociedade e como ela se comporta. Exemplo disso é o que o eu lírico nos diz em seguida! Por mais que não acreditasse em amor verdadeiro ou coisa do tipo, ele afirma que, apenas por hábito, dizia que queria amar. Não buscava o amor porque encontrava nele respostas, crescimento, amadurecimento, um alicerce da própria vida, mas tão somente pela ideia do hábito. Porque as demais peças - ou as demais pessoas - desse grande complexo pautam o amor ou, ao menos, algumas formas de amor como algo desejável.
No entanto, diante de algo novo que se apresentou à vida do eu lírico, ele afirma que se encontrou, encontrou esse novo “eu”, uma identidade que parece finalmente se descolar do complexo que discutimos anteriormente. O que seria essa novidade que chegou à vida do eu lírico trazendo uma aparente renovação? Exato. O amor representado na figura desse alguém.
Porém, perceba que ele segue confuso. É como se dissesse: Havia aquele “eu” profundamente relacionado ao complexo que é o mundo e agora, nesse amor, estou descobrindo um novo “eu”. Mas qual desses é o meu eu verdadeiro? Ou seria ainda um terceiro? Ou seria uma soma de todos esses?
De qualquer maneira, é fato que esse amor e esse alguém trouxeram alguma forma de transformação para a vida do eu lírico, o que fica explícito nos últimos versos aqui. Foi o perfeito encaixe da possibilidade de conhecer você que me fez compreender que sou muito mais do que a forma como me vejo dentro desse complexo? Ou é você literalmente a expressão máxima e única da minha mudança? Seja em conhecer esse alguém e desenvolver esse amor ou simplesmente na figura dele/dela, o eu lírico descobre que não era apenas uma simples peça do complexo. O amor revela que ele não era uma única folha, mas várias páginas e até mesmo um livro. Assim, a vida parecia ser “uma coisa só”, mas, no amor, ele descobre mais e se descobre como mais.
Independentemente da resposta, esse amor expresso nessa pessoa se tornou algo tão significativo e imponente na vida do eu lírico ao ponto em que nada mais importa, a não ser se tornar exatamente o que essa pessoa precisa ou deseja. O seu mundo, que antes se reduzia a um complexo, na verdade, se reduz ainda mais e se transforma em nada mais do que orbitar em torno desse alguém que, agora, é o seu mundo, é o seu tudo.
Observe qual palavra volta a aparecer nesses versos! Isso mesmo, “complexo” - ou melhor, “complexos”. Novamente, essa palavra surge na letra como um substantivo, porém em um sentido diferente do que vimos na primeira estrofe. Se antes nos voltamos a uma significação mais “social” da palavra “complexo”, aqui nos voltamos mais ao lado psicológico dessa história - tendo em vista que o nosso eu lírico está nos apresentando os processos internos que enfrenta tendo como objetivo máximo o desenvolvimento desse amor.
Você sabe o que é um complexo, partindo de linhas de estudo da Psicologia como a psicanálise de Freud ou a psicologia analítica de Jung? De forma bastante superficial, um complexo se trata de um sistema de ideias, emoções, memórias, percepções e desejos inconscientes profundamente associados e que são capazes de levar o indivíduo a pensar, a sentir e, por vezes, a agir de acordo com um padrão em torno de um tema em comum. Sim, falar sobre complexos é complexo… De qualquer modo, um complexo é um conjunto de “imagens” e “ideias” com uma forte carga emotiva e, quanto mais esse complexo é “alimentado”, mais tendemos a pensar, sentir e agir conforme ele.
Assim, o sentimento que o eu lírico vem desenvolvendo em relação a essa pessoa poderia se conectar a algo nesse sentido, o que fica ainda mais nítido nos versos seguintes: “Mas eu estou procurando amor”. Ele deseja conhecer, sentir, experienciar o amor. Algo o atrai fortemente para esse objetivo e, para atingi-lo, ele está tão cego pela situação que já nem se importa se precisará se mascarar como alguém que não é, contanto que essa atitude o leve aos braços dessa pessoa.
Por fim, o verso final dessa estrofe possui, tanto em coreano (니가 날 끝내주라) como na sua tradução para o inglês (finish me / finish me off), uma expressão ou um verbo que traz o sentido quase de “consumo até o fim”, de “consumação completa” de algo ou alguém, o que combina, de certa forma, um misto de prazer e destruição total. Por isso, podemos interpretá-lo como “Eu quero que você me consuma por completo” ou “Eu quero que você me consuma até o fim”, como se ele desejasse que a pessoa amada o consumisse do início ao fim, como um livro. Essa ideia apenas reitera a nós como o eu lírico estava se entregando integralmente em favor desse alguém e desse amor, porém de uma maneira que poderia ser destrutiva a ele mesmo.
O refrão de “Outro: Her” deu vida ao fim do primeiro álbum da era Love Yourself, ou seja, Love Yourself: Her. Nesse refrão, perceba que, além do termo “ela” ou “her” - que era essencialmente o título desse primeiro álbum da era, vemos também as palavras “wonder” (que pode ser traduzido como “dúvida”, “imaginação”, “maravilha”, etc.), “tear” (ou “lágrima”) e “answer” (ou “resposta”), que são os títulos das demais partes de Love Yourself. Assim, “Outro: Her” nos deu ainda em 2017 um pequeno spoiler do que veríamos no futuro da era.
Os versos do SUGA têm início com uma série de contrastes ou antíteses. Verdade e mentira, céu e inferno, aspectos que aparentemente se completam e denotam um todo. Isso reitera a maneira como essa pessoa simboliza tudo para ele e, assim, o eu lírico deseja ser o mesmo para ele ou ela.
Contudo, na forma como ele se observa dentro dessa situação, o eu lírico realmente acredita que pode representar “tudo” para essa pessoa somente quando se mascara, isto é, somente quando oculta pontos de quem ele verdadeiramente é. Por isso, ele vive sob esse dilema de jamais poder retirar a sua “máscara”, com medo de que a pessoa amada deixasse de retribuir o seu amor se conhecesse a sua personalidade e identidade.
Diante dessa reflexão a respeito da sua “máscara”, o eu lírico descreve de forma metafórica as escolhas e atitudes que ele toma buscando se tornar alguém que, aos seus olhos, seria digno de ser amado por essa pessoa.
Ele “se pinta” como alguém que não é. Ele se priva, “sacrifica” coisas das quais gosta e as substitui por outras que possam levar ao sorriso e à alegria de quem ele acredita amar, ao invés da sua própria também. Por isso, o eu lírico afirma: “Eu sempre tento ser o melhor para você” e, consequentemente, “Eu espero que você não conheça essa parte de mim”. Não se trata de “nós” e muito menos de “mim”. Apenas você, você, você.
Além disso, podemos voltar os nossos olhos aos sentimentos descritos aqui dando foco essencialmente ao BTS na sua posição de artistas e na forma como eles poderiam estar cantando esses versos também para nós, o ARMY, os seus fãs. Sabemos bem que, sobretudo no início da sua carreira, o grupo enfrentou momentos complexos - e, por vezes, ainda os enfrenta - em relação à sua identidade e a sobre o que deveriam ou não mostrar ao público, o que gostariam ou não de tornar visível. Por exemplo, podemos refletir metaforicamente sobre a própria maquiagem que surge aqui na letra e que nos leva à ideia de que idols e artistas de grande fama e sucesso usam, de fato, uma boa quantia de maquiagem, mas também à ideia de que a maquiagem pode esconder cicatrizes, olheiras, qualquer aspecto típico de um dia difícil e te tornar “mais bonito” quando necessário. Dessa forma, a maquiagem também não deixa de ser uma máscara. Ou ainda podemos pensar em quantas vezes vimos os membros do BTS discutindo o não quererem demonstrar as suas fraquezas aos fãs? Embora o grupo seja infinito na sua sinceridade quando se trata da sua música e mensagem, é claro que há temas, experiências e sentimentos que são dolorosos ou desagradáveis na hora de serem - se forem - externalizados. Recentemente, “Abyss”, do Jin, foi uma expressão única de um momento difícil combinado a sentimentos que ele, de modo geral, prefere manter reservados e é um excelente exemplo do que dissemos acima.
Esses versos, sinceramente, são muito pesados. O eu lírico nos mostra o contraste entre como ele se vê ou como ele se coloca quando está junto à pessoa amada e quando ele está sozinho, apenas consigo. Quando está com essa pessoa, como de costume, ele coloca a sua “máscara” - a qual, ao seu ver, é o único caminho para despertar esse cumprimento tão caloroso do seu amado ou amada. Ele afirma: “Eu sou sua estrela”. Uma estrela pode simbolizar um sinal de plenitude e de avanço na vida, ou pode ainda simbolizar novos começos. É exatamente isso o que ele deseja ser para essa pessoa: o início e o fim, o tudo que essa pessoa é também para ele é. No entanto, para isso, ele tem que brilhar como se nada estivesse errado, como se ele não estivesse escondendo partes de quem é, como se ele não estivesse tomando atitudes que somente beneficiem o lado oposto.
Na outra mão, a partir do verso seguinte, o eu lírico nos apresenta o outro lado da sua realidade, quando ele está consigo ou distante da pessoa amada, quando retira a sua “máscara” e permite se enxergar na condição em que ele tem se colocado de verdade. Ele não é uma estrela brilhante que reluz sobre a vida do seu amor, mas sim uma estrela perdida que sabe apreciar apenas a escuridão porque é somente nela que pode deixar de lado o fardo de ter que esconder quem é. É uma estrela perdida porque tenta espremer o seu brilho por outro alguém, mas não sabe brilhar por ou para si mesmo. Por isso, é apenas nesse espaço, nesse momento em que ele não se vê diante das luzes brilhantes da perfeição da pessoa amada e do amor que ele pode desfrutar de tão somente seguir o seu coração, onde ele não precise se segurar ou se conter de maneira alguma.
Contudo, já diziam os sábios que o tempo urge, não é mesmo? Tic tac, tic tac, tic tac… O seu momento na “escuridão” chega ao fim e, mais uma vez, é hora de vestir a máscara e de se segurar, de prender o que for necessário por trás da máscara a fim de ser o melhor para a pessoa amada.
Para além disso, novamente, podemos reler esses versos também sob uma perspectiva que nos fale sobre o BTS enquanto artistas em exposição constante. j-hope canta sobre ser recebido “animadamente” e, na construção dessa frase em coreano, podemos interpretar esse trecho também a partir de uma tradução mais aproximada para a palavra em inglês “cheers”, o que significa aplausos, gritos, vibrações. Como é que o ARMY recebe o BTS quando o grupo chega ao palco? Exatamente conforme essa descrição.
Podemos ainda observar o verso “Eu sou sua estrela”. A mídia cotidianamente denomina o BTS como “estrelas da música” e, ao subirem em um palco, isso se torna ainda mais inegável. Muito mais do que isso, os sete membros, de fato, são como estrelas nas vidas daqueles que os acompanham. Contudo, quando as luzes do palco se apagam e os aplausos, gritos e vozes cessam, o que resta não é o BTS como idols maquiados, que sorriem mesmo no cansaço ou que dançam mesmo na dor. Na escuridão, o que resta são os sete garotos, agora homens sul-coreanos, jovens, apaixonados pela vida e pela arte e que buscam compreender os limites e os pontos em comum entre quem são no palco e fora dele. Atualmente, podemos ver o BTS já sob uma outra postura, mais seguros e confiantes da sua identidade e trajetória. No entanto, essa jornada de autodescoberta foi um longo processo percorrido pelo grupo e que se tornava nítido em faixas como essa.
Finalmente, afirmar que o amor ou, ao menos, a ilusão do amor leva uma pessoa à loucura é um resumo muito certeiro de toda a discussão existente na letra dessa música, principalmente ao observarmos a loucura não apenas sob as conotações negativas que geralmente vemos, mas sim a loucura como uma alteração mental caracterizada pelo afastamento de uma pessoas das suas formas habituais de pensar, sentir e agir ou até mesmo como um sentimento que foge ao controle da razão. O amor pode, de fato, nos conduzir à loucura, a nos perdermos de nós mesmos.
O eu lírico, então, diz que se coloca como em uma equação - ou seja, um conjunto de “incógnitas” ou características que levam a um resultado - que se parece com ele o máximo possível, mas que não necessariamente representa quem ele é. Por meio dessa metáfora da equação, j-hope, na figura do eu lírico, se apresenta brilhantemente como uma variável, pois a variável é o caminho modificável para alcançarmos qualquer resultado desejado em uma conta. Por exemplo, se tenho uma equação x + 2 e desejo que o seu resultado seja 4, sei que o meu x deve ter o valor de 2. Assim, a partir da loucura dessa “equação” e se colocando como variável, ele pode entregar a essa pessoa - e veja que interessante os termos selecionados - “a resposta que ele fez”. Em outras palavras, o amor que ele direciona a esse alguém, a sua própria imagem como ele a apresenta a esse alguém nem sempre são o que são, mas são o que ele fez, o que ele construiu, o “número” que ele escolheu, o que ele pintou como uma obra de arte que não retrata a realidade. É um falso amor e uma falsa imagem. Esse sentido fica ainda mais nítido pela forma como, nos versos seguintes, o eu lírico se refere ao amor ou à sua imagem mascarada como “isso”, ou seja, como uma coisa, um objeto criado por ele.
Apesar disso, antes de voltar ao refrão para finalizar “Outro: Her”, j-hope canta que o eu lírico dá o seu máximo, doa tudo de si em favor desse amor, pois nessa pessoa amada ele, ainda assim, encontra um despertar, uma luz, um novo significado à própria existência.
A verdade é que as linhas são muito tênues. Quais são os limites entre amar e se perder no amor? Quais são os limites entre se reinventar no amor, encontrar nova identidade ou novas partes da sua personalidade nele e se deixar levar nesse processo? Quanto é ativo e quanto se torna passivo?
O amor é complexo - agora como adjetivo. E para questões complexas, não existem respostas simples como uma mera máscara que possam resolver todos os problemas. Como dizem, “o buraco é mais embaixo”.
À vista disso, “Outro: Her” foi, de fato, a música perfeita para finalizar o álbum Love Yourself: Her. Muito em breve, nos veríamos diante do segundo álbum da era, ou seja, Love Yourself: Tear, que viria discutir esses aspectos complexos do amor - identidade, ilusão, solidão e, sobretudo, a necessidade de colocarmos pontos finais em algumas das nossas histórias e atitudes. É por essa razão que a mensagem expressa na sua letra pode ser compreendida e aplicada em vários contextos. Um relacionamento amoroso. Uma amizade. Um relacionamento entre pais e filhos. E até mesmo o relacionamento entre o BTS - enquanto artistas - e o ARMY - enquanto fãs, como discutimos anteriormente.
Assim, essa canção toca na ferida e permite ao BTS e a nós enfrentarmos a rachadura das nossas próprias máscaras, da percepção de que aparência ao invés de essência pode nos levar apenas a andarmos em círculos no amor e em quem nós somos. E, sobretudo, da certeza de que o amor verdadeiro e a máscara jamais podem se colocar juntos sob um mesmo relacionamento.
Não seja para outro alguém uma estrela que sequer existe e, muito menos, uma estrela que não é enxergada por você mesmo.
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