Spring Day e o Desastre da Balsa Sewol:
Uma reflexão sobre o acidente e a postura do BTS
como artistas representantes da juventude
A coragem do BTS ao se posicionar sobre um assunto como o desastre da Balsa de Sewol em 2014 poderia ser um choque para muita gente, mas não para os fãs do grupo. Sempre com mensagens de esperança e amor ao próximo, o septeto sul-coreano confirmou, após três anos, as teorias de que o clipe musical de Spring Day estaria relacionado ao desastre da balsa Sewol.
Para explicar melhor o impacto que o desastre teve no país e a situação política que a Coreia do Sul passava no momento, iremos revisar o que aconteceu na época e porque, para uma banda de k-pop que havia estreado a pouco mais de um ano, em uma empresa pequena, o ato de visitar familiares das vítimas poderia colocá-los em uma lista negra de artistas que poderia significar o fim da carreira deles.
“(Sobre Spring Day) Eu pergunto se a canção era sobre um acontecimento triste específico e Jin me diz: “É sobre um acontecimento triste, como você disse, mas também sobre a saudade.” — Kim Seokjin para a Revista Esquire, em Novembro de 2020.
Na manhã do dia 16 de Abril de 2014, a balsa Sewol, que ia de Incheon para a Ilha de Jeju, levava 476 pessoas a bordo, sendo 443 passageiros dos quais 325 eram estudantes da escola Danwon; de acordo com os dados do Sistema de Identificação Automático, a balsa fez uma curva acentuada perto da Ilha Jindo, onde perdeu controle e virou.
O capitão e a equipe que trabalhava a bordo foram os primeiros a abandonar a balsa, após repetidamente pedir para o resto da tripulação ficar onde estava e dentro de suas cabines. Nas duas horas seguintes, 172 passageiros e equipe foram resgatados, mas muitos ainda estavam presos dentro da balsa que afundava. No total, 304 passageiros morreram, sendo destes 250 estudantes do ensino médio.
As causas exatas do acidente até hoje permanecem um mistério, mas especulações apontam que a provável tenha sido o excesso de peso devido à modificações ilegais feitas no navio que ainda assim possuía licença de circulação. Alguns membros do governo foram acusados de terem interesses financeiros na companhia responsável pela balsa, o que também provavelmente levou às investigações mal feitas e sem transparência por parte do governo. Mesmo hoje, muitos culpados seguem sem punição adequada.
O governo é até hoje um grande acusado pelo número de mortos do acidente, isso porque a Guarda Costeira que deveria ser responsável por um resgate rápido e eficiente não trabalhou com afinco, mentindo para as famílias das vítimas. Muitas vítimas foram resgatadas por barcos de pescadores locais. Jornalistas que tentaram cobrir os fatos foram demitidos e outros censurados e sofreram pressão do governo. Você pode ler mais sobre como o governo da então presidente Park lidou com o acidente e censurou artistas aqui.
Artistas que tentaram falar sobre o acidente ou demonstravam apoio aos familiares das vítimas eram colocados em uma lista negra do governo e sofriam “punições”. Dentre os artistas que estavam na lista negra do governo estava Bong Joon-ho, hoje diretor do filme “Parasita”, ganhador do Oscar de Melhor Filme de 2020.
Ele foi uma das personalidades que exigiram investigação do desastre, e seu filme “O Hospedeiro”, de 2006, que descreve a incompetência de um governo frente a um desastre, foi muito usado como um paralelo com o que aconteceu para criticar o governo.
Tendo em vista a tensão política vivida na Coreia em 2014, foi uma surpresa quando, em um artigo de Dezembro de 2020, as famílias das vítimas contam que 200 dias após o desastre, o BTS que ainda era um grupo jovem e sem tanta visibilidade, foi prestar homenagem às vítimas e apoio às famílias, mesmo sabendo que corriam o risco de serem colocados em uma lista negra do governo. Para um grupo até então pequeno como era o BTS em 2014, vindo de uma empresa que chegou perto da falência, ser colocado em uma lista negra naquela época poderia significar o seu fim.
O BTS, junto com o CEO da empresa Big Hit Entertainment, ainda doaram 100 milhões de wons diretamente para a associação das famílias das vítimas, cerca de 85 mil dólares. Inicialmente essa doação não era para ser de conhecimento público, e se tornou mais um exemplo do trabalho filantrópico e sincero que o grupo têm feito desde sempre — com ou sem o conhecimento público.
“Foi neste último mês de Abril. Enquanto entrevistava as famílias enlutadas após o 6º aniversário do desastre da Balsa Sewol, teve um nome inesperado que saiu da boca deles. A história segue assim. Em 2014, uns 200 dias após a tragédia, “jovens” vieram os ver. Eles queimaram incenso com cortesia (é um rito funerário coreano), e confortaram as famílias antes de sair. As famílias também disseram que eles doaram 100 milhões de wons coreanos para a associação das famílias. Os jovens que vieram ver as famílias enlutadas eram um grupo de idols com apenas dois anos em sua carreira, chamado BTS. As famílias explicaram que Bang Sihyuk, CEO da BigHit Entertainment, também estava presente com eles.
As famílias também disseram que estavam “tão gratos” por eles terem vindo visitar mesmo sabendo que havia uma lista negra sendo formada contra figuras artísticas e várias desvantagens sendo impostas pelo governo em relação ao desastre da Balsa Sewol. É por isso que essas famílias enlutadas têm estado “fervorosamente rezando e torcendo pelo seu futuro.” Talvez seja apenas natural e esperado que após aquele dia, eles queiram que eles (BTS), que vieram confortar aqueles que estavam afogando em sofrimento, sejam cantores que são amados mais do que qualquer um.” (…)
Claro, há aqueles que pensam que não será fácil para o BTS quebrar a barreira dos Grammys. Isso porque os Grammys são muito conservadores e majoritariamente constituídos por homens brancos e mais velhos que relutam em mudar. No entanto, uma coisa é certa. Os Grammys são só os Grammys. Independente de eles ganharem ou não, para aqueles que acham conforto neles, o BTS já é a maior estrela.”
A importância de o BTS ter dedicado uma música como Spring Day para as vítimas do acidente, bem como aos sobreviventes e familiares das vítimas, principalmente considerando a situação política que a Coreia do Sul viveu naqueles anos, é mais uma prova de que eles sabem o que fazem e que são cidadãos socialmente ativos e preocupados, além de artistas que procuram sempre demonstrar sinceridade e entregar conforto.
Em 13 de Dezembro de 2020, a música Spring Day se tornou a primeira e única música na história do Melon a se manter por 200 semanas consecutivas no chart Melon Top 100. Parte do sucesso se deve a tudo que Spring Day significa e representa ao povo coreano.
Agora, iniciaremos a análise do MV de Spring Day e todas as suas possíveis menções ao desastre da Balsa de Sewol, e como o grupo soube fazer referências sutis e ao mesmo tempo tão importantes a tudo o que aconteceu, mesmo com a possibilidade de censura. A análise se baseia principalmente no vídeo desenvolvido pela ARMY italiana Angela Pulvirenti.
Começamos o clipe com o Taehyung em uma estação de trem que não funciona há muitos anos. Ele ainda assim caminha até os trilhos, se ajoelha e encosta a cabeça para ouvir algum movimento dos trilhos. No entanto, o que escutamos em seguida, é o barulho do apito de um navio.
A câmera segue um trem que não vemos, e o trem que o Taehyung está esperando não aparece. Ele acaba seguindo, então, tristemente pelos trilhos. Essa cena representa o sentimento da família das vítimas: a espera pelo retorno daqueles que eles amam, como se nada tivesse acontecido; mas também a sua demanda por socorro para recuperar a balsa, que por muito tempo não foi ouvida, e se manteve no abismo junto com corpos perdidos até alguns anos atrás.
As primeiras palavras “Sinto sua falta” começam enquanto o Jimin olha o mar. Um tempo depois, vemos um sapato na beira do mar. Note, também, as roupas estragadas do Jimin. Essas cenas se referem às roupas das vítimas, também perdidas ao mar, bem como os sapatos que foram deixados no píer nos dias seguintes à tragédia como tributo.
Sapatos deixados no píer como tributo
Nas cenas da lavanderia, o Jimin ao lado do sapato representaria um amigo que se foi. Há uma teoria de que a lavanderia representaria a balsa.
As portas arredondadas das máquinas de lavar lembram muito as portas de um navio — as roupas dentro representam as vítimas. Mais do que isso: o Jin colocando uma moeda na máquina para que ela funcione, seria uma alegoria representando pessoas do governo que possuíam interesse econômico na empresa da balsa e que estavam envolvidas com corrupção para que a balsa funcionasse com um alvará mesmo estando fora das condições ideais para tal.
Sendo assim, a máquina girando as roupas, seria como o navio virando de lado e afundando e as roupas das malas dentro das cabines se espalhando lá dentro durante o processo.
Na cena que mostra as máquinas, é possível ver um papel colado em todas elas. A única coisa escrita que é possível distinguir deste papel é “Don’t forget”, ou seja, “Não esqueça”.
Este é um dos slogans mais usados para relembrar tragédias, mas no caso da Sewol, possui um sentido especial, já que todos diziam repetidamente para os sobreviventes e para os familiares das vítimas para aceitar o que aconteceu e esquecer.
“Os adultos estão constantemente nos dizendo para esquecer e nos animarmos, mas nós lembraremos dos nossos amigos […] Assim como nós, por favor, não se esqueça deles.”
Note que nesse trecho, a música diz “Por favor fique, fique aí um pouco mais”, bem no momento em que a câmera captura o Jin “dentro” da máquina, ou, nesse caso, da cabine. Isso é uma referência às ordens absurdas que foram continuamente transmitidas aos passageiros e estudantes da balsa Sewol, para se manterem dentro das cabines enquanto o navio afundava — e esta foi, infelizmente, uma das maiores causas das mortes; teria sido suficiente se muitos tivessem pulado no mar para se salvar.
A cena do Jin “dentro” da máquina também lembra muito essa imagem, de um dos mergulhadores contratados para resgatar os corpos do mar, dentro de uma câmera de ar. Isso também seria uma crítica, visto que o governo mentiu ao dizer o número de mergulhadores contratados para resgatar as vítimas.
Além disso, a mídia continuava a mostrar notícias como essa do mergulhador para assegurar a nação de que o governo estava fazendo o máximo possível, mas eram sempre notícias falsas.
Note ainda que as cenas da lavanderia acontecem com o relógio da parede apontando por volta de 9:35. Entre 9:30 e 9:45am, o equipamento de comunicação da Sewol parou de funcionar e a equipe foi resgatada, enquanto os passageiros foram deixados à própria sorte.
A clássica cena do Yoongi sentado em uma pilha de roupas é assustadoramente semelhante a “Personnes”, do artista francês Christian Boltanski, cujos trabalhos envolvem memória, morte e perda; Personnes significa literalmente tanto “pessoas” e “ninguéns”. A pilha de roupa representa as pessoas que nos deixaram, cercadas pela escuridão, que seria o fundo do mar.
Ainda sobre Personnes, uma reflexão sobre a obra: “Conforme você anda, a sensação é de honrar os mortos, de tentar observar os detalhes de cada um. Essas roupas agrupadas podem representar ‘covas comunitárias’, ou cadáveres dispostos para identificação no ginásio da escola, mas também constituem uma espécie de cemitério. Pois a experiência é a mesma: que não há ninguém aqui e mesmo assim o lugar está lotado.”
Personnes, do artista francês Christian Boltanski
Já nas cenas do Jungkook com o carrossel, na cena em que já é noite, pode-se notar vários laços amarelos presos ao carrossel, um símbolo fortemente ligado ao acidente. Laços amarelos possuem vários significados, mas estão comumente associados a aqueles que esperam o retorno de alguém amado. Eles pertencem à categoria de laços de atenção usados para expressar apoio a causas e campanhas civis. Mais especificamente na Coreia do Sul ele tem sido muito usado como símbolo em memória das vítimas da Sewol. Vários locais e estradas do país foram coloridos com laços amarelos “da esperança”.
No carrossel, ainda é possível ler “YOU NEVER WALK ALONE” (Você nunca caminha sozinho). “You’ll never walk alone” também é um concerto musical da Broadway, chamado exatamente de ‘Carousel’, e é performado em 2 atos: o primeiro com tema de luto e o segundo de conforto. Há ainda uma árvore dentro de um círculo que representa a vítima, mas também o ciclo da vida, e que está ligado à árvore que aparece no final do clipe.
A música principal do musical também é o hino oficial do Liverpool FC, que demonstrou seu apoio na campanha dos laços amarelos no dia anterior ao acidente da Sewol, quando estava passando pelo aniversário de outro grande desastre que o clube passou, a tragédia do estádio de Hillsborough, que matou 96 pessoas, em sua maioria também jovens. Em 2016, as famílias de Hillsborough se encontraram com as famílias de Sewol, se juntando em uma campanha comum; isso porque em ambos os casos a imprensa corrupta reportou notícias falsas e os familiares lutaram e ainda lutam por justiça.
Outro detalhe é a condição do carrossel: enferrujado e estragado, em uma condição parecida com a Sewol que foi recuperada do fundo do mar após o impeachment da presidente Park.
O letreiro escrito “Omelas” faz referência ao conto “Aqueles que Abandonam Omelas” de Ursula K. Le Guin; o conto trata sobre um festival de verão na cidade utópica de Omelas, onde todos vivem felizes — mas essa felicidade tem um preço: uma criança deve viver segregada em um porão escuro, nua e má nutrida, uma condição que logo vai levá-la a morte.
A placa de “sem vagas” se refere ao fato de que o bem-estar da sociedade está apenas restrito a alguns. O significado da estória de Omelas pode ser comparado também ao filme Snowpiercer, ao qual o clipe musical também faz referência.
MV de Spring Day
Pôster de Snowpiercer
O Snowpiercer é um trem que se mantém em constante movimento ao redor da Terra, que foi afetada por uma nova era do gelo. Os últimos sobreviventes todos vivem dentro do trem, que possui os vagões divididos por classes sociais: os mais ricos vivem nos vagões da frente, enquanto os mais humildes nos últimos. No filme, os pobres são constantemente oprimidos pelos ricos, que às vezes sequestram suas crianças; eles então organizam uma rebelião para chegar à frente do trem e o conquistar, mas ao chegar lá descobrem que para o trem continuar funcionando eles precisam que crianças pequenas o suficiente tomem conta da manutenção da máquina em condições terríveis.
No clipe, o hotel Omelas parece ser simbolicamente dentro do trem, a representação dos vagões reservados aos ricos, que vivem às custas dos pobres e exploram crianças.
Ambas histórias são uma alegoria para a atual sociedade capitalista, onde pessoas estão dispostas a sacrificar inocentes pelo seu benefício próprio. E foi exatamente o que aconteceu com a Sewol.
Há cenas do Jin e do Taehyung imitando câmeras com as mãos, como que para guardar as boas lembranças daqueles que se foram. Além disso, nessa cena em específico, Jin parece fazer o símbolo de uma câmera enquanto todos os outros membros sobem as escadas e ascendem. Uma simbologia para aqueles que ficam apenas com as lembranças dos que se foram.
Nessa sequência, algumas coisas acontecem: Jungkook corre passando pela lavanderia, sozinho, perdido, encontra os membros mas quando chega na saída, o trem está passando, indo embora. No instante seguinte, temos ele com outra roupa sentado dentro do trem, olhando para fora, vendo seu eu e seus amigos ficando para trás. Em seguida, Jungkook fecha os olhos e o Namjoon, também parado dentro do trem, fecha os olhos e inclina a cabeça para baixo, numa pose de luto.
Como dissemos antes, a lavanderia representaria a balsa. Assim, essas cenas representariam o momento de partida das vítimas, quando a alma deixa o corpo — e o trem entrando no túnel, a passagem, do momento da morte.
Após o momento da morte, vemos os membros em cima das pilhas de roupas, não mais no abismo escuro do oceano, mas sob as nuvens no céu, mais uma representação dos passageiros que foram vítimas do desastre.
Por fim, nas cenas finais, temos os sapatos pendurados em uma árvore — isso representa alguém que morreu em circunstâncias trágicas e a solenidade da cena sugere os meninos prestando respeito ao memorial. A cena traz um sentimento de memória, solidariedade e conforto. Afinal, todo o clipe foi feito para transmitir essa sensação: as cores são suaves, mas vívidas, e os locais são abertos e amplos, ou fechados e aconchegantes.
A ARMY Angela, responsável pelo vídeo de análise sobre o clipe em 2017, conheceu a família das vítimas no final de 2019. Ela e outros ARMYs possuem um projeto para divulgação de tudo o que aconteceu na tragédia.
“Uma das mensagens da música do BTS é que nós devemos amar as pessoas que são diferentes de nós. Eu acredito que muitos ARMYs que sonham em um mundo melhor irão entender a tragédia da Sewol e mandar uma mensagem de apoio e solidariedade para a sociedade coreana,” Angela disse.
Finalmente entendi o mv com mais profundidade, obrigado por trazer essa análise em português!